Enxergar com os olhos da esperança diante de uma tragédia. Foi justamente o que fez Cleonice Ferreira da Silva, 49 anos, depois de se submeter a um procedimento cirúrgico para a colocação de uma nova prótese cerebral. Ela já tinha lidado com a rejeição de uma prótese plástica aos nove anos de idade. Somente 40 anos depois veio a prótese definitiva para ser colocada na região onde foi encontrado e retirado um câncer ósseo.
Enxergar com os olhos da esperança diante de uma impossibilidade. Uma queda na escada após sentir um mal súbito no trabalho levou Vinicius Tavares, 23 anos, a bater a cabeça e a ter um AVC isquêmico. Perdeu 50% do cérebro e os médicos disseram que ele tinha apenas 1% de chance de recuperação.
Cleonice e Vinicius são exemplos de situações que ocorrem diariamente no Brasil e no mundo, e que muitas vezes ficam sem o devido tratamento. A boa notícia é que esses dois casos foram atendidos no HC da Unicamp há alguns meses e tiveram uma solução que saiu do Laboratório do INCT Biofabris, sediado nesta Universidade.
Uma equipe interdisciplinar de especialistas – das áreas de química, física, biologia, engenharia de materiais, engenharia mecânica, engenharia química, odontologia e medicina – desenvolveu uma prótese de titânio testada por dez pacientes e outros cinco já aguardam o momento de terem suas próteses implantadas nos próximos meses.
Na semana passada, Cleonice e Vinicius compareceram ao Biofabris para mostrar o bom resultado cirúrgico a técnicos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que vieram para um treinamento na Unicamp sobre tecnologias inovadoras na área da saúde, com foco no projeto de construção de próteses por impressão 3D. A intenção é que o incremento seja levado à escala industrial.
No encontro, foram vários os motivos para celebração, segundo o coordenador do INCT Biofabris Rubens Maciel Filho. Os pacientes conseguiram recuperar o que tinham perdido e os especialistas da Unicamp festejaram o sucesso da prótese, fazendo a integração do produto que desenvolveram.
Maciel contou que o Biofabris é formado por várias competências que fazem uma conexão entre a ciência básica e a aplicação nos pacientes. “Construímos novos materiais e procedimentos para fazer as aplicações das próteses customizadas. Adquirimos conhecimento e amadurecimento em relação às tecnologias para requerer junto à Anvisa a validação do procedimento e a possibilidade de produzir as próteses para atender a um maior número de pacientes”.
Os estudos da nova prótese com impressão 3D, camada a camada, começaram no ano 2000, com a chegada do engenheiro mecânico André Luiz Jardini Munhoz à Faculdade de Engenharia Química (FEQ). Em 2010, foi lançado o Biofabris com recursos do CNPq e da Fapesp. Isso possibilitou entender a relação entre novos materiais, crescimento celular e desenvolvimento de ferramentas para a produção de próteses customizadas.
Como tudo começou
Jardini relembra que, quando criado o Biofabris, recebeu a visita do cirurgião Paulo Kharmandayan, chefe da Disciplina de Cirurgia Plástica da Faculdade de Ciências Médicas (FCM). “Ele chegou com um jornal debaixo do braço sabendo da formação do Biofabris e disse que vinha com o relato de uma dor: o HC fazia cirurgias em pacientes com deformações cranianas, mas o uso de materiais plásticos causava rejeição nos pacientes”.
Esse foi o pontapé inicial para a idealização das próteses de titânio sob medida por impressão 3D – as próteses customizadas. “Construímos essas próteses exatamente na geometria a ser encaixada no defeito ósseo do paciente. É sólida, com espessura controlada, com o projeto de fixação dos parafusos. O último passo é o posicionamento e a sua fixação no paciente. A grande vantagem é que a prótese tem caráter permanente”, relata Jardini.
A nova prótese é fabricada conforme o tamanho da perda óssea e o esforço requerido para cada uma de suas partes, revela Maciel. Se for preciso ter articulação, ela pode ser maleável. Além de já vir customizada, facilita a vida do cirurgião ao reduzir o tempo operatório e exclui a necessidade de moldar a prótese no cérebro, na hora do procedimento.
Também o médico pode estudar a prótese antes da cirurgia em biomodelos físicos ou no computador. E, o fato dela já estar com o tamanho, com a geometria correta e com algumas ranhuras especiais no material, acaba promovendo uma melhor osseointegração, ou seja, os tecidos crescem de maneira mais rápida e mais organizada em cima da prótese.
De acordo o professor da Faculdade de Engenharia Mecânica (FEM) Éder Sócrates Najar Lopes, a prótese é desenvolvida a partir de exames de imagem como tomografia computadorizada (TC) e ressonância magnética (RM). Há um protocolo para se nortear, mas já a partir do exame de imagem pode-se fazer a reconstrução tridimensionalmente no computador, o planejamento, o ajuste e a produção segundo o que foi projetado.
Na prática, Jardini salienta que o paciente em atendimento no HC passa pelo setor de Tomografia Computadorizada, o CD com as imagens obtidas na CT ou na RM vão para o Biofabris, para análise dos engenheiros, projetistas e equipe médica cirúrgica.
O biomodelo, réplica anatômica fiel do paciente em impressão 3D, é uma ferramenta de comunicação. Com ele, o médico e o engenheiro conseguem se comunicar claramente dentro dos aspectos da anatomia, fazendo uma avaliação final e impressão em material biocompatível (no caso do titânio), adentrando a sala cirúrgica.
Najar, da área de projetos e especialista em ligas de titânio, sublinha que “a Anvisa abriu esse edital público e selecionou o INCT Biofabris por conta da expertise na área de metal. A Anvisa veio à Unicamp acompanhar o desenvolvimento da matéria-prima até os casos clínicos, que terminam no HC”, descreve.
O trabalho das próteses também envolveu o esforço de instituições como o CTI, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a PUC-Sorocaba e o Ipen. “Já estamos na fase de implantar, de testar e de acompanhar os pacientes”, informa Najar.
Após a implantação de próteses em dez pacientes, entretanto, veio a frustração de não poder atender os pedidos que têm chegado. “Só tínhamos a aprovação do Comitê de Ética para 15 pacientes”, relata Jardini. “Por isso tivemos a ideia de candidatar o projeto à Anvisa para trazer seus técnicos aqui e trocarmos informações, de modo a certificar o processo”.
Maciel frisou que tudo foi efetuado dentro das regras, sem queimar etapas, para não correr riscos que se divulgam como o da máfia das próteses. “Com isso, vamos consolidar o projeto até o ponto de nos candidatarmos para treinar, mostrar e disponibilizar para a Anvisa o que é essa tecnologia”.
Implantação
Kharmandayan, um dos médicos que está aplicando a nova tecnologia, explica que, em uma cabeça plástica, é muito fácil colocar a prótese e tirá-la. Porém, quando isso envolve seres humanos, os cirurgiões têm que interagir com pele, couro cabeludo, nervo, músculo e estruturas que atrapalham a chegada até o osso. “Isso tudo é discutido durante o planejamento e a realização do biomodelo, partindo para a construção da prótese em metal”, expõe.
Nas áreas odontológica e médica, o titânio, nos últimos 20 anos, se tornou um material de melhor qualidade. “Sofre menos oxidação e, em longo prazo, resiste mais. O aço, apesar de resistente, vai sofrendo degeneração”, informa ele. “Com a ajuda da tecnologia de prototipagem rápida tridimensional, é possível fazer encaixes precisos, e a moldagem na hora do procedimento deixou de existir”.
Alguns pacientes do HC que receberam a nova prótese já somam 61 meses de pós-operatório bem-sucedido. Sofreram acidentes de moto, carro, traumas, quedas de escada, AVC, câncer, etc. “Nesse momento, o neurocirurgião, ao receber um paciente com algum tipo de trauma ou doença, pensa em salvar aquela vida. Diante da gravidade, não fica pensando se um osso vai fazer falta no futuro. Importa que o paciente sobreviva”, defende o médico.
Depois vem a cirurgia plástica reconstrutora. Kharmandayan registra que é muito gratificante ver o que se consegue restaurar no indivíduo. “Fazer o bem não é demagógico. É fundamental. Faz parte da nossa atividade e faz bem”, expressa o médico, que divide essa tarefa de trabalhar com as próteses com toda a equipe médica do HC, principalmente da Cirurgia Plástica e com aquela que ele chama de “equipe de sangue”: a Neurocirurgia.
Enxergando com os olhos da esperança, a paciente Cleonice não tem mais vergonha de conversar com as pessoas. Teve sua face reconstruída e, com a nova prótese, recuperou totalmente a sua autoestima e hoje conta que dificilmente as pessoas sabem o lado do seu cérebro que foi operado. As dores de cabeça praticamente desapareceram.
Enxergando com os olhos da esperança, Vinicius viu o “impossível” acontecer, a despeito da sentença de 1% de chance de cura. Após 40 dias na UTI e uma internação de dois meses, ele teve alta. Passou seis meses com um expansor no cérebro, submeteu-se a três cirurgias e ficou dois anos sem falar. Um dos lados do corpo ficou paralisado e se tornou cadeirante. Mas as coisas começaram a melhorar com a reconstrução cerebral. Voltou a falar, melhorou o equilíbrio na fisioterapia, já começa a trocar os primeiros passos e já planeja voltar à faculdade de análise de sistemas.